'Freezing Point' de Sean Mundy
- Vitória Machado
- 15 de jun. de 2023
- 3 min de leitura

Sean Mundy é fotografo e artista digital, nasceu no Canadá em 1991 e está ativo em Montréal, onde também é representado pela Galeria Youn. Realizou diferentes exposições individuais e coletivas, tanto em sua cidade como em Los Angeles, Hong Kong, Paris, Barcelona e Veneza.
Entre dúvidas e questões identitárias, Mundy constrói cenas de tensão e incerteza, por vezes utiliza uma abordagem digital sutil, porém, nega e perverte as construções narrativas clássicas, contando com o poder das associações subjetivas ao construir histórias e sentidos. Como o próprio artista declara, seu objetivo é criar imagens conceituais através do trabalho com fotografia e sua manipulação digital, expandindo o dado surreal e simbólico que a realidade carrega consigo.
Uma obra que parece ilustrar seu “auto descrito” processo criativo é ‘Freezing Point’, exposta ao público em janeiro de 2022. Nela, a neve embranquece e normatiza todo o ambiente que rodeia um corpo exposto e estendido com o peito para baixo, seus pés estão ao lado inferior esquerdo da tela e o restante do corpo é direcionado para o superior direito, onde a face é escondida e virada para o gelo. Flechas estão cravadas por toda sua extensão, indo das pernas até os ombros, dando a entender que, se o corpo era o alvo, então a flecha fincada ao lado da cabeça, no branco impuro da neve, foi por fim uma das únicas sem acerto.
Nisto, a imagem se revela ao público lembrando uma releitura da carta 10 de espadas de Raider-Waite, um dos mais populares baralhos de tarô, criado pelo místico britânico Arthur Edward Waite – com tal referência, adentramos o território desejado pelo artista ao apostar nas (com o poder da palavra) ‘associações livres’, efeito da interação de um indivíduo com sua obra. No desenho clássico desta carta também nos deparamos com um corpo machucado e de bruços, mas desta vez com exatas dez espadas fincadas em sua carne.
As espadas, neste caso flechas, demostram o limite atingido e extrapolado, uma derrota na batalha que agora pode ser apenas degustada antes do recomeço. O título da obra, ‘Freezing Point’, talvez remeta à ideia de congelamento e cristalização, uma ruína fatal que congela o personagem na cena do golpe, pulsante em sua alma e exposta a nós, que observamos de modo voyeurístico um sujeito em sua derrocada.
Indo além, a água em seu estado líquido ganhou ao longo da história inúmeros simbolismos, seja de purificação e cura, vida e passagem, limpeza e renascimento – entretanto, Mundy nos apresenta um cenário gélido que passeia do pacífico até o opressivo. O gelo é símbolo frequente na literatura, como em Neuromancer de William Gibson ou até mesmo em Frankenstein de Mary Shelley, ele parece expressar uma oposição à água liquida e viva como na fonte do paraíso, pois ao contrário, espelha rigidez em sua frieza, temos o inverno tratado como estação da morte em tantas histórias, já que torna territórios em pouco condizentes com a vida – como é para nosso personagem em ‘Freezing Point’.
A carta 10 de espadas, por sua vez, significa que algo chegou ou está chegando ao fim. Geralmente aponta uma perda real, porém, sua mensagem nos relembra: enquanto uma porta se fecha para sempre, outra se abrirá. Será assim para o sujeito da obra analisada? Talvez este personagem apenas tenha uma continuação, recomeço ou mesmo um fim diferente, na mente daqueles que o veem e o imaginam. Afinal, Mundy usa a obra como ponto de congelamento, deste ‘Freezing Point’ o homem atingido pelas flechas não poderá mais sair, estará para sempre caído na neve.

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