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Surrealismo, psicanálise e a Metamorfose de Narciso

  • Foto do escritor: Vitória Machado
    Vitória Machado
  • 20 de jul. de 2023
  • 3 min de leitura

Atualizado: 7 de abr.

Dalí foi um admirador e assíduo leitor de Freud. Durante seus últimos 18 meses de vida, Freud recebeu inúmeras visitas de escritores e intelectuais e, mais especificamente, em julho de 1938, o intrigante pintor catalão pôde encontrá-lo em sua casa em Londres, levando consigo uma obra feita dois anos antes: Metamorfose de Narciso.


O encontro acontece de forma pouco calorosa — o pintor não falava inglês nem alemão, o que dificultava ainda mais a comunicação entre eles. O evento marcou Dalí, como mostram seus desenhos e comentários feitos após o encontro. Porém, a aparente indiferença do analista em relação a ele e à sua pintura o inquietou. Afinal, diante da obra, supostamente Freud havia dito uma frase que, para o catalão, pareceu ambígua e crítica: “Nas pinturas clássicas procuro o inconsciente – em uma pintura surrealista, o consciente”.

Na realidade, o comentário de Freud se alinhava perfeitamente aos princípios desse movimento artístico, descritos por André Breton no Manifesto Surrealista de 1924, onde o automatismo psíquico foi colocado como centro, descrito e defendido como meio de exprimir as reais funções do pensamento. A proposta é remontar os afetos e pulsões, colocando-os como pivôs de uma nova linguagem artística, além de criticar a então chamada “atitude realista” e a própria lógica — para então defender processos criativos alheios ao controle racional, abrir portas às associações inesperadas entre representações ou, melhor, abrir portas ao inconsciente.

Com base nisso, Salvador Dalí possuía sua própria visão e modo. Através do autointitulado “método paranoico-crítico” — que o pintor insistentemente tentou apresentar a Freud —, Dalí defendia a capacidade do inconsciente em produzir imagens sem sentidos prévios e, como paranoicos, poderíamos encontrar similaridades e ligações entre coisas pouco similares, interpretando e associando ideias inicialmente desconexas.

A obra exemplar dessa sensibilidade paranoica e criativa é justamente aquela apresentada a Freud: Metamorfose de Narciso, feita a óleo sobre uma tela de 51,1 cm de altura e 78,1 cm de comprimento. Nela, Dalí volta ao livro Metamorfoses, de Ovídio, onde o conto de Narciso é escrito — um belo jovem, filho do deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope, se apaixona pela própria imagem refletida nas águas e, como presságio de sua ruína, a ninfa Eco lança-lhe um feitiço que o faz definhar no leito do rio até morrer, para então se tornar uma flor com seu nome.

No quadro, vemos a silhueta estilizada de Narciso, obcecado pelo próprio reflexo, já mostrando indícios de sua decadência com a sombra recaída sobre seu couro cabeludo — muito semelhante à rachadura no ovo representado ao lado. Já neste outro lado do quadro, encontramos um ovo de onde nasce uma flor narciso, mas não apenas isso: vemos também uma mão que tenta segurar ambos, feita com traços similares aos que dão forma ao corpo do jovem mitológico. Essas figuras do primeiro plano são lados refletidos e sugerem a transformação de Narciso em flor, assim como no conto.

Há também uma figura nua, de costas para a cena e de pé sobre um pedestal — vislumbre do personagem principal em seu glorioso isolamento autoerótico, ignorante ou então cínico em relação à sua posição. Mais ao centro do quadro, mas ainda próximo da figura solitária, há um grupo de pessoas se movimentando: algumas olhando para o lado, outras para baixo, ou até mesmo com mãos levadas ao rosto — possivelmente representam as tantas almas rejeitadas por Narciso, indo de humanos até ninfas.

O quadro é repleto de imagens propícias às mais variadas interpretações, mesmo apontando para um conto/tema específico. Dalí o escolheu como exemplar de seu método e trabalho ao apresentá-lo para Freud e, apesar de ter saído frustrado ao achar o pai da psicanálise indiferente à sua criação e presença, na realidade, algum impacto atingiu ambos.

Afinal, em uma carta ao escritor Stefan Zweig, que serviu de ponte entre os dois, Freud declara: “Até hoje eu tive uma tendência a pensar que os surrealistas, que parecem ter me escolhido como seu santo patrono, eram completamente loucos. Mas esse jovem espanhol de olhos selvagens, com sua indubitável maestria técnica, me conduziu a uma opinião diferente. De fato, seria do maior interesse explorar analiticamente o crescimento de um trabalho como esse…”.

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